Filmes & Educação
29/11/2018
Milagre em Amsterdã
Revista Piauí
Milagre em Amsterdã - O Jovem Dziga Vertov
Os primeiros passos do cineasta que é considerado o Trótski do cinema
EDUARDO ESCOREL
EDUARDO ESCOREL
Para celebrar o primeiro ano da Revolução de Outubro, foi lançado, em 7 de novembro de 1918, O Aniversário da Revolução, filme de arquivo editado por Dziga Vertov (pseudônimo de Denis Arkadyevich Kaufman, 1896-1954), produzido pelo Comitê de Cinema do Comissariado de Esclarecimento do Povo.
FOTO: ROGER CREMERS PARA O INTERNATIONAL DOCUMENTARY FILM FESTIVAL AMSTERDAM (IDFA)
Cem anos depois, na noite de 20 de novembro, durante o 31º Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA), mais de 700 pessoas lotaram a sala 1 do Pathé Tuschinski, no Centro da capital, para assistir à estreia mundial da cópia restaurada e recomposta de O Aniversário da Revolução.
Quando cheguei ao monumental cinema de estilo eclético, no qual o projeto de Hijman Louis de Jong harmonizou o expressionismo da Escola de Amsterdã com traços Art Nouveau e Art Deco, o sentimento compartilhado, creio por boa parte dos que tiveram o privilégio de ir a essa sessão, era de estar prestes a ser testemunha de um milagre – a estreia de um novo filme de Vertov.
Havia uma excitação perceptível no saguão e na plateia, à medida que o público tomava seus lugares no Tuschinski, assim chamado em homenagem a Abraham Icek Tuschinski (1886-1942), homem de negócios e exibidor, nascido na Polônia, que construiu o cinema, inaugurado em 1921, com 1 620 lugares na época.
A aparição inesperada de um Vertov desconhecido não tinha, na verdade, nada de milagroso – era resultado, em primeiro lugar, do trabalho meticuloso do historiador Nikolai Izvolov, reconstituindo e supervisionando o restauro de O Aniversário da Revolução a partir da lista de sequências descoberta pela pesquisadora Svetlana Ishevskaia, com a colaboração do Arquivo Estatal Russo de Fotos e Filmes Documentários, em Krasnogorsk, nos arredores de Moscou.
Para tornar possível essa exibição do primeiro longa-metragem de Vertov, foi decisiva também a iniciativa do novo programa IDFA on Stage (IDFA no Palco). Contando com o apoio do Prins Bernhard Cultuurfonds (Fundo cultural Prins Bernhard), O Aniversário da Revolução, embora silencioso, pode ser exibido com trilha original e acompanhamento ao vivo – 70’ de música eletrônica improvisada e arranjos de composições eruditas, durante os 119’ da projeção. Com direção musical e produção da Bass Beek/CineSonic, estavam postadas no palco, embaixo da tela, três instrumentistas (pianista, violinista e de equipamento eletrônico), além de um acordeonista e uma soprano; e no balcão, a soprano e regente Anna Azernikova, estava à frente do Russian Chamber Choir (Coro de Câmara Russo, de Amsterdã).
Vertov começou sua carreira, aos 22 anos, fazendo os kino-nedelia, 43 cine-jornais da semana, lançados a partir de maio de 1918, até junho de 1919. Segundo o historiador Yuri Tsivian em Lines of Resistance: Dziga Vertov and the Twenties (sem edição brasileira), o próprio Vertov mutilou vários desses cine-jornais, cortando cenas para usá-las em O Aniversário da Revolução. Forçado por seu então chefe a restaurar os kino-nedelia dos quais retirara sequências, Vertov em alguns casos substituiu as imagens originais por outras, às vezes “anacrônicas”, escreve Tsivian. Tornou-se difícil, assim, saber “com qual versão dos cine-jornais lidamos [hoje em dia]: a original ou as que foram refeitas em 1919”.
A importância principal, tanto dos kino-nedelia, disponíveis online há alguns anos no site do filmmuseum da Áustria, quanto de O Aniversário da Revolução, agora ressuscitado, é permitirem conhecer o início da formação de Vertov. Seria sem sentido, porém, compará-los a O Homem com a Câmera, o inovador filme de Vertov feito dez anos depois que, apesar de ter enfrentado forte oposição interna quando lançado na União Soviética em abril de 1929, tornou-se um marco da história do cinema mundial.
Nem por isso, os cine-jornais e o longa-metragem de estreia do cineasta iniciante devem ser desconsiderados. Pelo contrário. São os primeiros passos de um aprendizado. Apesar da simplicidade da edição, incluem registros pouco conhecidos, como, entre outros, o das primeiras manifestações da revolução de Fevereiro de 1917, na Rússia, que levaram à abdicação do czar Nicolau II, e o da atuação de Leon Trótski no primeiro ano da República Soviética recém-criada, após a vitória dos bolcheviques, liderados por Vladimir Lenin.
Notícia publicada em 3 de novembro de 1918, dias antes da estreia de O Aniversário da Revolução, informa que o Comitê de Cinema do Comissariado do Povo está lançando o longa-metragem que “capta todos os elementos principais da Revolução Russa”. Junto com outro filme (Os Inimigos do Poder Soviético e a Luta Contra eles), do qual nada se sabe, O Aniversário da Revolução seria “exibido à noite em cinco praças de Moscou e na maioria dos cinemas da cidade. A entrada em todos os cinemas seria gratuita”.
O Comitê de Cinema afirma ainda estar “organizando dez trens especiais, batizados em homenagem ao camarada Lenin […]. Haverá um cinema móvel instalado em um vagão de cada trem. O filme virgem será enviado para as províncias. As cerimônias comemorativas de Outubro, prestes a acontecer, serão filmadas de modo a produzir um filme inteiro das celebrações a ser distribuído não apenas da Rússia mas também no exterior”.
É difícil precisar até que ponto esses grandiosos propósitos chegaram a ser efetivamente realizados, mas atestam a posição de destaque dado ao cinema na época. Quanto à atuação de Vertov, baseados em seus próprios textos de 1935 e 1958, ficamos sabendo que considerava ter aprendido a ser um escritor de cine-jornais em uma mesa de montagem e em um trem blindado: “Eu aprendi fazendo os kino-nedelias, fazendo A Batalha de Tsaritsyn [curta-metragem inédito de 1920, do qual não há cópia conhecida], montando O Aniversário da Revolução […].”
Depois, Vertov relata, “houve as viagens para o front com o camarada Yermolov [Pyotr Yermolov, cinegrafista]. Os resultados foram dois filmes experimentais curtos e material documentário para um trabalho futuro, A História da Guerra Civil. […] O passo seguinte foi meu trabalho nos trens de agitação. […] Em 6 de janeiro de 1920, eu parto com o camarada [Mikhail] Kalinin para o front sudeste. Levo filmes comigo, incluindo O Aniversário da Revolução. Nós estudamos o novo espectador. Projetamos o filme em todas as paradas do trem e em salas de cinema urbanas. Ao mesmo tempo, filmamos. O resultado é um filme sobre a jornada de Kalinin, principal líder do Comitê Executivo Central da Rússia. Esse período do meu trabalho se conclui com o grande filme A História da Guerra Civil”.
Após a sessão de O Aniversário da Revolução, na semana passada, em Amsterdã, a nota dissonante da noite gelada soou enquanto voltava andando para o hotel, pensando no destino dos principais responsáveis pelo evento festivo que acabara de ocorrer.
Hijman Louis de Jong (1882-1944), arquiteto que projetou o cinema Tuschinski, foi internado em Westerbork, campo de detenção e trânsito, no nordeste da Holanda, controlado pelos nazistas a partir de 1942. Depois de transferido, foi morto em Auschwitz.
Abraham Icek Tuschinski (1886-1942), dono do cinema batizado com seu sobrenome, também foi levado para Westerbork e transferido para Auschwitz, onde foi morto.
Dziga Vertov enfrentou o que ele mesmo definiu como “oponentes” durante toda sua carreira. A dificuldade para realizar seus projetos pessoais persistiu, mesmo após ter feito Três Canções sobre Lenin, em 1934. Em outubro de 1939, ele escreveu em seu diário: “Eu faço uma proposta depois da outra. Enquanto o estúdio não propõe nada. […] E eu sinto como se estivesse no fundo. Diante do primeiro degrau de uma escadaria longa e íngreme. Você quer fazer um filme a partir de um roteiro. Mas lhe dizem: ‘Bem, quem pode escrever o roteiro para você?’
Você quer fazer um filme sem um roteiro. Mas lhe dizem: ‘Isto não tem um plano. Um filme deve necessariamente ser feito conforme um roteiro.’ Você quer fazer filmes sobre pessoas reais. Lhe dizem: ‘Estou firmemente convencido que pessoas reais não podem ser filmadas de modo documentário; não podemos permitir isso.’ […] aí lhe dizem: ‘Não podemos permitir que você faça isso. Você tem um nome e uma identidade criativa. Nosso estúdio não pode correr esse risco. Nós precisamos mantê-lo da maneira que sua reputação no cinema requer.’ Aonde, eu pergunto, está a saída para esse impasse?” [Citado por Annette Michelson em Kino-Eye The Writings of Dziga Vertov, 1984, sem edição brasileira.]
Para Michelson, a persistente dedicação à construção do socialismo em um só país impediu Vertov de reconhecer que ele se tornara o Trótski do cinema.
Vertou encerrou sua carreira no ostracismo, com colaborações ocasionais no cine-jornal Novosti Dnya (Notícias do dia). A partir de 1944, desistira de apresentar novos projetos. Morreu, aos 58 anos, vítima de câncer no estômago.
Esta notícia foi publicada no site Piauí em 28 de novembro de 2018. Todas as informações nela contidas são de responsabilidade da autor.